Por Rafael Rosa Hagemeyer
Infelizmente o debate
feito entre historiadores a respeito da regulamentação da profissão
tem revelado quanto nossa formação é deficiente, pois algumas
manifestações de colegas contrários à medida tem revelado total
desconhecimento não apenas da história das organizações
profissionais (que dirão alguns, é assunto de especialistas nas
relações de trabalho), mas da própria forma como a História se
afirmou como disciplina acadêmica. Quanto a este último tópico,
acho sugestivo o texto do Valdei Araújo sobre “A voz do dono e a
história profissional”, já publicada neste blog.
Tratemos, portanto, de
um outro argumento sempre levantado pelos contrários à
regulamentação: o fato de terem lido na faculdade obras
inspiradoras de profissionais de outras áreas. Encontramos
contribuições importantes da literatura, linguística, comunicação,
ciências sóciais, filosofia e economia, etc. Essa
interdisciplinariedade nos habilita a trabalhar nessas áreas? Não,
porque apesar de podermos acumular conhecimento específico a
respeito de alguns de seus aspectos, nossa formação é
diferenciada. O mesmo vale para outras áreas em relação à
História. No entanto, poderíamos considerar que o historiador
poderia trabalhar na manutenção e conservação de diversos
acervos. Alguns cursos até incluem esses tópicos na formação
acadêmica. Mas infelizmente as profissões de arquivista, museólogo
e sociólogo já estão regulamentadas, já faz algum tempo. Muitos
historiadores nem sabem disso, pois não viam nessas atividades uma
possibilidade real de emprego. Óbvio: a possibilidade real de
emprego só passa a existir no momento em que a profissão é
regulamentada. A partir de então, os arquivos serão obrigados a
abrir concursos públicos para arquivistas, passará a ser exigida
habilitação específica – ainda que, em tese, alguns de nossos
colegas estariam habilitados para exercer funções nestas áreas.
Há aqueles que
consideram a regulamentação excessiva um erro, que é melhor
flutuar livremente num oceano de possibilidades abertas e
interdisciplinares, como era o mundo dos eruditos do século XIX. Tal
oceano, sinto informar, só existe na cabeça imaginativa desses
acadêmicos, que parecem desconhecer a própria estrutura das
universidades em que trabalham. Seria então melhor que vivêssemos
na desregulamentação total, pois haveria maior oferta de trabalho
para todos? Não acredito. “Desregulamentação” é a palavra de
ordem da grande onda neoliberal iniciada nos anos 1990, cujos efeitos certamente são a recessão e o desemprego. Com a desregulamentação, todos os profissionais das humanidades são colocados no mesmo "saco de gatos", e com isso aumenta-se o "exército de reserva" da mão-de-obra disponível, que se sujeita a qualquer tipo de trabalho e qualquer salário. Talvez muitos historiadores já não estejam mais familiarizados com esse processo porque o autor que o desvendou já
não é mais estudado com frequência nos cursos de História. Os que lembram dele
certamente dirão: “Mas ele não era formado em História, e
desenvolveu reflexões importantes também na área da filosofia, da
economia, etc”. Sim, Marx não era formado em História. E também não tinha emprego,
vivia de bicos como jornalista, contava com a ajuda financeira de Engels e teve uma vida pobre e desgraçada. Não é muito diferente da situação por que passam muitos historiadores no Brasil hoje. Mera coincidência?
O movimento que levou historiadores a dar à
História uma dignidade acadêmica no século XIX, transformando-a em carreira
universitária com sua própria teoria e seus próprios métodos, modificou um pouco esse quadro: começou a formar professores, graças à difusão do princípio de escolaridade universal e da transformação da História em disciplina escolar.
Contudo, ao longo do século XX a História passou a competir com as
novas “Ciências Sociais” que a acusavam de superficialidade,
positivismo, falta de aparato conceitual adequado – ou seja, falta
de “cientificidade”. Esse debate, por vezes desleal,
deixou muitos historiadores com complexo de inferioridade, desesperados
por justificarem sua existência autônoma. Para se justificarem, emprestaram instrumental teórico e categorias de análise de outras
áreas, renunciando até mesmo o olhar diacrônico, que foi
característico e diferenciador de sua análise interpretativa, adotando a visão estática e rígida do estruturalismo. Contra essa atitude depressiva, levantou-se uma reação histérica e imperialista, que assumiu a demagógica premissa de que "Tudo é História", quando na verdade "tudo
pode vir a ser história", se for trabalhado e elaborado como tal por um historiador. Não há razão para que o campo da História seja visto como menor: seus procedimentos vem sendo pensados e
discutidos há mais de dois mil anos, ela está estabelecida no ensino escolar e universitário há mais de 150 anos e tem tido uma capacidade genial de se repensar e ser reiventada. Como lembra Peter Burke em seu livro História e teoria social, alguns conceitos originais, como “economia moral” e “invenção das tradições”, foram cunhados por historiadores e hoje vêm sendo utilizados por profissionais das ciências sociais. Talvez sejamos menos propensos ao culto personalista de determinados autores (nós não temos uma "Santíssima Trindade" ou "Pais fundadores" aos quais sempre nos remetemos), e certamente somos mais comedidos em relação à aplicabilidade universal de nosso aparato conceitual, pois temos consciência de que cada período histórico exige ser analisado em sua singularidade.
O diálogo interdisciplinar é inerente ao trabalho do historiador e pode ser frutífero para todos, portanto. Mas isso não significa abrir mão de nossa
identidade profissional e de nossa responsabilidade específica. Como
em todo o debate, existem aqueles que sofrem da doença de Zelig,
personagem de um filme de Woody Allen que se identificava tanto com o
interlocutor que se descaracterizava completamente. Profissionais que trabalham com temas históricos em áreas correlatas podem dar boas contribuições para os historiadores encaminharem seu trabalho. Mas o simples fato de um sujeito pesquisar um tema histórico não faz dele necessariamente um historiador. Ele pode até acumular conhecimento sobre um assunto específico, num período específico. Mas a maneira como ele define seu objeto, o instrumental teórico a que recorre e o tipo de problemática que estabelece são de outra ordem.
Quais os critérios que
nos definem? Pode parecer um argumento burocrático, mas qualquer universidade desenvolve em seus cursos um perfil, uma proposta de formação profissional e um projeto de inserção social para seus formandos. Além disso, há sistemas de validação
de diplomas por parte de órgãos colegiados. Quando conferimos um
diploma de pós-graduação em História, levamos em consideração
que o aluno teve ao menos disciplinas de teoria e metodologia de
história, além das cadeiras específicas. Um autodidata pode sentar
em casa e ler tudo que houver disponível sobre qualquer assunto, mas
para se assegurar que realmente o domina precisa estabelecer um
debate qualificado com outros profissionais. Para isso ele pode
discutir em um simpósio, ou mesmo em um bar, e ali ser questionado, corrigido, complementado, etc. Mas nada disso é tão sistemático quanto o ensino curricular,
onde há um professor da área avalia as considerações do aluno e
lhe confere um grau certificado por uma instituição autorizada. No
limite, os defensores do autodidatismo e da desregulamentação da
área de História estariam questionando o próprio sistema
universitário, com todo seu sistema curricular de disciplinas, avaliações e
validações.
Tudo pode ser questionado, é verdade. Mas há que se ter um mínimo de coerência, e nesse sentido é ridículo que essa crítica seja feita
por profissionais que atuam dentro da universidade e discutem cotidianamente essas questões. Queremos que essa discussão seja mais aprofundada pelo conjunto dos historiadores
brasileiros. A falta de ação nesse sentido permitiu que o Ministério de Educação impusesse recentemente a separação entre o bacharelado e a licenciatura em nossa área, e apesar do princípio de indissociabilidade entre ensino e pesquisa estar plenamente sedimentado entre nós, não tivemos uma reação à altura para impedir que a separação fosse consumada. Acostumados em refletir sobre o passado, os historiadores devem
agora discutir qual é o futuro que querem para sua profissão no
Brasil. Uma coisa é certa: a situação atual pode interessar à
manutenção de posições estabelecidas de alguns profissionais de
outras áreas. Mas ela não interessa aos estudantes de História, que ao se formarem se deparam com
oportunidades de trabalhos praticamente restritas à docência, e
mesmo nela vêm sendo prejudicados, na medida em que a carga horária
de História vem sendo reduzida para acomodar outras disciplinas, tais como
Filosofia e Sociologia.
Por fim, a regulamentação da
profissão de historiador no Brasil não interessa apenas aos
historiadores. Interessa a todos os cidadãos de boa-fé, realmente
preocupados com a falta de cultura histórica do povo brasileiro, que
não pode ser comparada sequer à média de conhecimento histórico
de nossos vizinhos latino-americanos que tenham o mesmo grau de
escolaridade. No “país sem memória” aqueles que ousam olhar
para o passado com profissionalismo e independência são
ridicularizados como “chatos”, “pedantes” ou “obsessivos”.
Por que relembrar coisas tristes
ou vergonhosas do nosso passado, que preferimos esquecer?
Regulamentar a profissão de historiador é colocar o Brasil
finalmente no divã, para que tome consciência de si mesmo. E talvez
a maioria dos historiadores não se sinta seguro para aceitar esse
desafio, que certamente é amedrontador. Mas certamente muitos jovens
que amam a História, e que se sentem hoje desmotivados à
carreira de professor, se sentirão estimulados a contribuir com esse
processo.
Como uma cidadã de boa fé me interessa muito a regulamentação da profissão de Historiador. tem uma citação de uma amigo que faz mais de 30 anos que dificilmente não lembro dela pelo menos uma vez por mês. "O homem que não acompanha a História, será atropelado por ela."(Jaison T. Barreto - Ex Senador,perdeu as eleições para o Governo do Estado para Esperidião Amim. Eleição essa que o oponente de Jaison ganhou no grito, na fraude, no tapetão.Foi a primeira eleição direta pós Anos de Chumbo).
ResponderExcluirErrata:A palavra tem na segunda linha saiu com "t" minúsculo é com "T" maiúsculo. Nessa mesma linha o número 30 saiu com a letra o no lugar do número O(zero).
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