terça-feira, 27 de novembro de 2012

Um historiador vale tanto quanto um médico ou advogado, não é?

Marco Antônio Silva foi o único professor universitário que aceitou a participar do Seminário sobre a Regulamentação da Profissão de Historiador, realizado pela Federação do Movimento Estudantil de História (FEMEH), na PUC-Campinas em 1995. Naquele tempo, em que a ANPUH era contra a regulamentação da nossa profissão, como infelizmente ainda hoje muitos professores universitários de História são, ele teve a coragem de assumir sua posição. Agora ele discute o status social do historiador perante outros, como médicos, advogados, geógrafos e sociólogos...

O Senado brasileiro vem de aprovar lei regulamentando a profissão de Historiador. A partir de agora, algumas tarefas específicas passarão a ser privilégio profissional de quem tiver formação acadêmica na área. Não é a primeira carreira de nível superior que merece essa regulamentação. Mesmo no campo das Ciências Humanas, Sociólogos e Geógrafos já desfrutam há alguns anos de condição similar.
Participo do debate sobre a questão, na área de História, ao menos desde os anos 80 do século XX. Lembro de colegas que sustentavam a falta de necessidade de regulamentação em nosso espaço profissional, considerando que importantes historiadores brasileiros do século XX (Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda e Caio Prado Jr.) não tinham formação em curso superior de História. Esse argumento apresentava duas graves fragilidades: 1) quando os três fizeram cursos superiores, não havia bacharelado em História no Brasil; 2) Freyre, Buarque de Hollanda e Prado Jr. tiveram condições pessoais ou familiares para requintadas formações humanísticas fora do Brasil - respectivamente, Estados Unidos, Alemanha e Grã-Bretanha.
A situação é muito diferente para um jovem brasileiro de classe média ou menos que, nos dias de hoje, estuda História e se lança num mercado de trabalho fortemente regulamentado noutras áreas. Permanecer nesse mercado fora de suas regras dominantes é assistir à consolidação dos direitos alheios sem garantia de direitos próprios.
Regulamentar uma profissão é definir exclusividades de exercício, sim. Isso não se confunde com impedir o direito ao pensamento. A História, como tema, sempre será objeto de livre acesso para jornalistas, ficcionistas, advogados, médicos, cidadãos em geral... O desempenho profissional na área, diferentemente, dependerá de uma comprovada capacidade técnica e teórica, obtida em formação acadêmica - como ocorre em relação a médicos, engenheiros, dentistas...
Há quem legitime a regulamentação de algumas carreiras (Medicina e Direito, particularmente) e reivindique a liberdade de prática profissional para as demais: Medicina lida com vidas humanas, Direito zela pelas garantias individuais e coletivas diante da Lei. Quer dizer que falar sobre o tempo humano (fazer, memória) não possui igual magnitude? Quer dizer que pesquisar e ensinar o Holocausto Nazista ou a Ditadura brasileira de 1964/1984 não é tão minucioso quanto interpretar uma lei ou fazer uma cirurgia? Não vejo hierarquia entre essas práticas. Respeito muito os colegas profissionais de outras áreas regulamentadas. Tenho muito respeito por mim mesmo e pelos demais colegas de minha área profissional.
Enquanto houver regulamentação de algumas profissões, não vejo legitimidade em exigir desregulamentação de outras. Agora, podemos conversar sobre desregulamentação geral das profissões no Brasil. Quem se habilita?
Marcos Silva
(Professor Titular de Metodologia da História, FFLCH/USP)

Um comentário:

  1. não estou certo de que o debate deva ser levado nesta direção: "se não se regulamenta uma, que sejam desregulamentadas as outras". não me parece um argumento convincente.

    o texto fala em termos de "privilégio", que me parece ser o primeiro equívoco. se o historiador se formou pelas instituições competentes e foi reconhecido como tal, já não se trata mais de privilégio. além disso, a comparação com medicina e direito também não procede. embora o termo historía (investigação) tenha sido utilizado pelo saber médico muito antes de heródoto, e embora a aproximação entre os campos da história e do direito seja uma evidência histórica, suas práticas atuais se mostram bastante distintas. não é com elas que, neste tema, a profissão do historiador deve ser comparada.

    por que não se discute as atuações dos historiadores frente aos museólogos e aos arquivistas, por exemplo, já que os editais de concurso para provimento de cargo de historiador/historiógrafo normalmente prevê como função a classificação e disposição de fontes documentais, a organização de acervos e exposições e outras tarefas similares? por que não se discute, para além das paredes departamentais, o que define institucional e epistemologicamente a tal da "identidade" do historiador diante do cientista social, do geógrafo e, para provocar, do jornalista?

    outro ponto: o texto, quando menciona o ofício do historiador, fala simplesmente em termos de pesquisa e ensino, quando não se limita à vagueza da expressão ("algumas tarefas específicas"). por que não se discute as outras atividades, digamos técnicas, às quais o texto da lei faz referência?

    e uma última questão: será mesmo o diploma universitário a única garantia para uma "comprovada capacidade técnica e teórica"?

    de todo modo, o debate é extremamente importante e profícuo, mas acredito que deva ser colocado em termos mais complexos e com argumentos elaborados de acordo com esta complexidade.

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