sábado, 15 de dezembro de 2012

SBHC declara guerra à profissão de historiador

Rafael Rosa Hagemeyer


Depois de tanto tempo sofrendo "fogo amigo" de colegas historiadores, eis que enfim os "outros profissionais atuantes na área" resolveram se manifestar contra a regulamentação da profissão de historiador. Depois de anos atuando na nossa área, resolveram reclamar o "uso capião".

E a iniciativa partiu da única "categoria organizada corporativamente" (como nossos detratores gostam de chamar a iniciativa da ANPUH). São eles os "historiadores da ciência", que enfim, depois da imprensa, levantaram sua voz contra nós.  Organizados na Sociedade Brasileira de Historiadores da Ciência, parece que agora  finalmente descobriram que a ANPUH existe, e querem estabelecer um diálogo - depois de 30 anos nos ignorando solenemente. Segue o link com a "Carta Aberta" publicada sintomaticamente no "Jornal da Ciência":



Os argumentos são os mesmos de sempre - imprecisão do que seja "História", o fato de que há "vários profissionais competentes de outras áreas" (e incompetentes também, mas o interesse é defender o privilégio de uma minoria). A preocupação é não deixar que historiadores se encarreguem de dar disciplinas de "História da Ciência" nas faculdades. Aliás, reclamam também a solidariedade dos historiadores da Arte, da Filosofia, entre outros, categorias que por sua própria natureza etérea, diante da solidez da "ciência", são menos organizadas.


A obrigatoriedade de um historiador dar disciplinas de História em outras áreas da universidade: História Econômica, História da Arte, História do Direito, História da Administração, História da Comunicação, História da Ciência, etc, é uma prerrogativa fundamental para a qualidade do ensino e da formação profissional voltada para um quadro mais amplo: o exercício da cidadania, contra a razão técnica alienada que promove a destruição sistemática do planeta.

Consideramos fundamental, em qualquer área da História, uma visão geral do processo histórico, que a compreensão do desenvolvimento das diferentes formas de conhecimento estejam relacionadas ao contexto mais amplo da época em que aqueles homens viveram. Lembro-me particularmente de um Encontro Nacional de História da Mídia, em São Luís do Maranhão, onde havia muitos profissionais de comunicação fazendo apresentações de absoluto senso comum - nas "Mesas Redondas"... Isso gerou um mal-estar entre os colegas historiadores e a discussão em um GT onde se discutia o perfil dos pesquisadores e seu "background" na área de História. Pois acaso estudantes de outras áreas não penam com a bibliografia e o aparato conceitual dos historiadores quando vão fazer uma "simples" seleção para o mestrado?

É preciso portanto relativizar o discurso auto-depreciativo de muitos colegas e reconhecer a necessidade de um historiador ministrar essas cadeiras em outros cursos, sob pena dos profissionais de outras áreas verem o desenvolvimento de seu perfil profissional a partir do "desenvolvimento da técnica por ela mesma": desenvolvimento evolutivo das técnicas comunicacionais, artísticas, científicas, administrativas, etc, sem uma relação com o contexto histórico na qual se desenvolveram - diferencial verificável ao se ter aulas com um historiador ou um não-historiador. Ou acaso há historiadores dando "Sociologia da Cultura"? Certamente é uma matéria de natureza teórica que alguns historiadores mais próximos dessa área estariam aptos a ministrar. Mas não seriam todos e nem mesmo a maioria que estariam habilitados para isso. Mas tal possibilidade não estaria aberta, pois disciplinas de sociologia devem ser dadas por sociólogos.

Nas universidades públicas isso funciona, sempre funcionou, e professores que fizeram toda sua carreira na universidade pública muitas vezes se colocam contrários à regulamentação por não verem necessidade dela. É evidente: as universidades públicas são o único lugar da sociedade brasileira em que a profissão de historiador "já está regulamentada" - tem espaço reconhecido, e diríamos cativo, e cidadania plena. Mas fora da universidade pública, o que acontece? Alguém fiscaliza o que ocorre nas universidades particulares? O Ministério da Educação estabelece algum critério que ao menos estimule uma empresa a contratar um profissional com formação na área?

É o tipo de questão que não vale responder com: "é, mas eu tenho um amigo que não é formado, mas trabalha e é supercompetente". Significa, então, que os alunos que você, professor de História em universidade pública, está formando, não são competentes para ocupar essas vagas com responsabilidade? E proporcionalmente, para esse seu "amigo competente", quantos outros incompetentes há no "mercado"? Ou acreditaremos que as universidades privadas são avaliadas melhor pelo "mercado" do que pelo MEC? Quais são as diretrizes que estabelecem a exigência de que haja cadeiras de história em outros cursos, e que sejam ministradas por historiadores? Não é fundamental que, ao invés de disciplinas demagógicas como "Responsabilidade Social", inventadas como estratégia de marketing e muitas vezes bibliografia de auto-ajuda, sejam substituídas pelo ensino de história do desenvolvimento de sua área de atuação profissional? Não seria essa a garantia de maior consciência social e cidadã, contra o trabalho alienado e especializado promovido pela razão instrumental triunfante da sociedade contemporânea?

Um profissional da área de engenharia, por exemplo, estará melhor formado se tiver tido aula de "história da engenharia" com um engenheiro ou com um historiador? Aliás, existe tal disciplina nos curriculuns de engenharia? Se não existe, não seria o caso de começar a existir? Alguém acha que os engenheiros se oporiam? Quem se opõe é o mercado, que quer que os homens acreditem que vivem num presente constante, onde a história da engenharia não passa de um entulho de técnicas ultrapassadas que, por estarem ultrapassadas, não precisariam mesmo ser estudadas. O que interessa é a "última novidade" na área, não a identidade profissional vista como herança de um processo histórico, pensada a partir da inserção social das profissões, o status que gozam, seu papel estratégico no desenvolvimento do país, etc.

Então, quando me perguntam: "Você acha que um historiador seria mais competente para dar aula de qualquer cadeira de história na universidade", minha resposta é: em geral sim. Se ponderarem: "Mas haveria profissionais suficientes para satisfazer a demanda de professores dessas áreas?". Minha resposta é que não só haveria como a própria pesquisa nessas áreas seria alavancada pela demanda, uma vez que historiadores lotados em diversos setores gerariam interesse maior dos alunos em se especializarem em áreas que hoje encontram-se "fechadas" ou, por que não dizê-lo, "abandonadas".


Depois de anos discutindo se a História era uma "ciência" ou uma "arte", cabe aos historiadores fugirem deste engodo epistemológico e assumirem que a História é uma profissão, que as faculdades formam profissionais competentes para atuar nessas áreas, e que elas devem ser ampliadas com base na reflexão das relações entre as diversas técnicas e seu contexto social, político, econômico e cultural. E para isso basta tão somente um diploma, em qualquer nível, que garanta o mínimo de discussão teórico-metodológica necessária. Hoje, qualquer instituição universitária exige, além de graduação, um mestrado e/ou doutorado. Não é pedir muito aos "novos historiadores da ciência" que planejem sua carreira nesse sentido.

Um comentário:

  1. vocês REALMENTE querem impedir musicólogos de lecionarem História da Música nas universidades? Vocês querem impedir doutores em Letras de lecionarem História da Literatura?

    vocês realmente querem transformar a academia em um cartório?

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